Relato de um Mochileiro na Patagônia

Relato de um Mochileiro na Patagônia
  • By Elaine Santos
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  • Gumercindo Vicente Raia

    Relato de um Mochileiro na Patagônia
    (na visão de um cidadão)


    A Patagônia é uma região do planeta que sempre me pareceu envolta numa aura de mistério, talvezpelo desconhecimento de como são realmente aquelas terras longínquas, chamadas de Fim do Mundo.
    Fica localizada no extremo sul da Argentina e Chile, com um formato que vai se estreitando à medida que se aproxima da Antártida, sempre dividida pela Cordilheira dos Andes, sendo a linha central dos cumes a divisa dos dois países. Minha viagem foi contratada através de uma agência de ecoturismo de S.Paulo, que mantém uma parceria com uma operadora argentina, num esquema bastante interessante que possibilitou o encontro de pessoas de várias partes do mundo, antes totalmente desconhecidas, porém, todos com o mesmo estilo de viagem, voltado para o trecking e amantes da natureza.

    Já no aeroporto de Buenos Aires descobri que nos meses de verão, vão para a Patagônia, pessoas do mundo todo, atraídos por essa ânsia de conhecer um lugar tido como desconhecido e diferente daquele oferecido pelo turismo convencional. Janeiro de 2008 foi uma época conturbada nos aeroportos locais, com greve dos funcionários das Aerolíneas Argentinas. Fiquei durante 6 horas à
    espera do vôo que me levaria para El Calafate; ponto de início da aventura, e nesse período analisei os diferentes tipos de turistas que ali se encontravam: eram pessoas de todas as idades, mas a maioria com grandes malas empilhadas nos carrinhos, muito estressados, tentando achar uma fila onde ficar, numa confusão enorme.

    Porém o que me causou estranheza é que aos poucos, nós componentes do pessoal “trilheiro”, calçando botas especiais de caminhada e com nossa bagagem toda acondicionada em modestas mochilas nas costas, começamos a nos aglutinarmos em um canto do grande salão do aeroporto e em pouco tempo éramos um animado grupo de novos amigos, falando uma mistura de inglês e espanhol, trocando
    experiências das viagens já feitas. Estávamos tão à vontade que confesso até dormi no chão, usando a mochila como travesseiro.

    Depois desse caos, embarcamos com destino a El Calafate. Aos poucos, ia se desdobrando a nossos pés, entre nuvens, a paisagem patagônica, recortada por rios de cor acinzentada, todos formados pelo degelo vindo das montanhas da Cordilheira dos Andes (foto 01). Já na chegada, o aeroporto de El Calafate causou um impacto: trata-se de uma pequena construção, perdida no meio de uma estepe sem vegetação, onde soprava um vento constante e muito gelado (foto 02).

    O encontro de nosso heterogêneo grupo se deu em um hostal, tipo albergue, nos subúrbios da cidade de El Calafate-Argentina. Éramos um grupo de 18 turistas vindos do Brasil, USA, Itália, Irlanda, Canadá e Austrália (foto 03). Nossa guia, uma argentina de Buenos Aires, tratou de nos deixar todos à vontade, nos conduzindo a pé pelas ruas da cidade.

    Foto 1
    Foto 2
    Foto 3

    Essa cidade é como se fosse uma Campos do Jordão local, com muitas lojas de lembranças e artesanatos em prata, restaurantes com comidas e vinhos típicos e muita gente com ar de saúde em seus rostos.

    No dia seguinte, bem cedo, partimos em micro ônibus, com destino a El Chaltén, distante 220 km, que se mostrou ser um lugarejo muito simpático, encravado aos pés das montanhas, com um caudaloso rio ao lado (foto 04). Já foi um local muito tranqüilo, mas, devido ao crescente interesse turístico está se transformando rapidamente, com construções por toda parte. Após o encontro com o nosso guia local, deixamos nossa mochila principal num hostal e preparamos uma mochila menor, contendo o estritamente necessário para três dias de caminhada.

    Foto 4

    No meio da tarde, adentramos o Parque Nacional Los Glaciares  (foto 05), com um forte vento gelado nos empurrando para todos os lados, mas completamente felizes por estar finalmente percorrendo aqueles caminhos no meio da mata (foto 06). O parque tem sua vegetação totalmente preservada, onde tudo ainda é muito puro, sem a interferência do homem. É também um exemplo de limpeza e organização: não se vê nem uma bituca de cigarro pelos caminhos.

    Foto 5
    Foto 6

    Após uma caminhada de 4 horas pelos bosques, passando por pequenas pontes sobre riachos cristalinos, algumas ribanceiras e de vez em quando cruzando com outros grupos de turistas, chegamos ao nosso acampamento  (foto 07). Era composto de várias barracas tipo “igloo”, no meio das árvores, com uma barraca maior que servia de cozinha e refeitório e um sanitário do tipo “casinha” de lona, sobre um buraco escavado no solo.

    Foto 7

    Já tínhamos sido informados que não haveria banho nos próximos 3 dias, pois, apesar de haver água potável em abundância nos lagos  (foto 08), é proibido trazer equipamentos de grande porte, tipo um aquecedor, para o parque. A administração é rigorosa e tudo o que estava à nossa volta, foi trazido em mochilas pelo pessoal de suporte da agência ou no lombo das lhamas domesticadas.

    Foto 8

    A luz do dia se prolongava até aproximadamente 21 horas e após uma pequena refeição regada a vinho argentino, foram distribuídos sacos de dormir de alta montanha, 2 para cada um de nós, pois a temperatura chegava próxima de zero grau na madrugada.

    Foram 3 dias sem banho, com caminhadas diárias de 6 a 8 horas, mas apesar do esforço, fomos totalmente recompensados pela grandiosidade da paisagem que se descortinava após cada clareira na floresta. Com o passar dos dias, após essa profunda interação com uma natureza intacta, tal qual Deus a criou, foi aflorando o verdadeiro espírito do “ecoturista” e do “mochileiro”, que acredito serem pessoas como eu, que têm o gene da curiosidade por conhecer novas terras, novos povos, novas e diferentes maneiras de viver. Nós gostamos do nosso entorno e das pessoas que nos cercam, mas não nos contentamos somente com isso. Queremos mais, muito mais………….. queremos descobrir, sentir, apreciar, ver com os próprios olhos o que há depois daquela curva no caminho. Pessoas como nós se sujeitam ao desconforto de carregar sua bagagem nas costas e dormir em uma barraca, porque essa é a maneira de estar presente nos lugares mais afastados e de difícil acesso desses parques. Se voltássemos todas as tardes para dormir em um hotel em El Chaltén, não seria possível estar em todos os lugares que estivemos e nem tampouco registrar, por exemplo, a exuberante beleza do Cerro Fitz Roy sem nuvens, às 20 horas de um dia e às 6 horas da manhã do dia seguinte.  (foto 09 e 10)

    Foto 9
    Foto 10

    Nessa época do ano, as montanhas têm gelo somente na parte mais alta e nos glaciares, que são acúmulos de gelo formados há muitos séculos (foto 11 e 12). Esses glaciares no seu vai e vem de congelamento no inverno e descongelamento no verão, vão erodindo as rochas, formando grandes montanhas de sedimentos, apelidadas pelos argentinos de “morrenas”.  (foto 13 a 15)

    O guia nos mostrou uma situação preocupante que está acontecendo num ritmo mais acelerado: o degelo dos glaciares no verão está acontecendo num ritmo mais acentuado que o congelamento no inverno, de tal forma que essas “morrenas” foram se formando mais próximas umas das outras, a ponto de levar os glaciares a se restringirem ao sopé das montanhas. Conforme informado pelos guias argentinos o local onde se localiza o lago visto na  (foto 16), segundo registros históricos, há menos de 300 anos, era todo composto de um enorme glaciar. As preocupações com esse degelo acelerado são muito grandes e os guias locais procuram conscientizar os turistas que ali vêm, oriundos de todas as partes do mundo, para que se tornem verdadeiros arautos em defesa da natureza, contra o aquecimento global provocado em grande parte pelo frenético consumismo das nações industrializadas.

    Foto 11
    Foto 12
    Foto 13
    Foto 14
    Foto 15
    Foto 16

    Uma visão que não me sai da mente ao relembrar aquelas magníficas paisagens é a do Cerro Fitz Roy (foto 09, 10 e 17). É um pico de 3.441 m, formado por rocha granítica de origem vulcânica, diferentemente das rochas de origem sedimentares dos Andes, o qual se impõe majestoso com seu cume coberto de neve o ano todo. Para ali se dirigem, alpinistas do mundo todo, que acampam em sua base, esperando as melhores condições climáticas para chegar ao seu topo e voltar no mesmo dia. Na (foto 18), se olharmos com atenção, veremos 3 pontinhos negros na neve: eram alpinistas escalando a montanha para acamparem na sua base e tentarem a escalada no dia seguinte. Essa imagem nos dá a dimensão exata da grandiosidade do feito desses corajosos e desconhecidos aventureiros.

    Foto 17
    Foto 18

    Após a visita ao Pq. Nac. Los Glaciares, retornamos a El Calafate e no dia seguinte visitamos o Glaciar Perito Moreno (foto 19 e 20), um enorme bloco de gelo que se estende a perder de vista e do qual despencam grandes blocos azulados no lago gelado à sua frente, espetáculo que pode ser visto inclusive a bordo de um barco. Em seguida, atravessamos a fronteira para o Chile e acampamos no enorme Parque Torres Del Paine, declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco (foto 21 e 27). Foram 3 dias de duras caminhadas diárias em torno de 10 a 15 kilômetros, escalando verdadeiras montanhas de rochas soltas  (foto 28), fazendo trecking nos glaciares, navegando no Lago Pehoe e visitando os mirantes do Valle del Francês  (foto 29), mas a sensação que tínhamos era de sermos felizardos por compartilharmos aqueles cenários de pureza e grandiosidade.

    Foto 19
    Foto 20
    Foto 21
    Foto 22
    Foto 23
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    Foto 26
    Foto 27
    Foto 28
    Foto 29

    A partir daí seguimos de ônibus, atravessando as enormes e áridas extensões de estepes, onde pastavam bandos de guanacos e ovelhas (foto 30). As fazendas locais de criação de ovelhas são distantes uma das outras, com mais de 100.000 hectares cada uma e são auto-suficientes, para sobreviverem às condições de clima bastante rudes no inverno.

    Após atravessarmos em balsa o Estreito de Magalhães  (foto 31), adentramos a Ilha da Terra do Fogo, região onde dizem, fica a verdadeira Patagônia e acampamos numa aconchegante fazenda local, sendo recepcionados pelo proprietário e sua família, que nos serviram um delicioso assado de ovelha à moda patagônica (foto 32), acompanhado do tradicional vinho argentino.

    Foto 30
    Foto 31
    Foto 32

    Foi também na Terra do Fogo que constatei um outro problema, resultante da desastrosa interferência do homem na natureza. Há muitos anos, para propiciar a diversificação da tenda dos colonizadores daquela região, o governo argentino introduziu na Ilha castores trazidos da América do Norte, para caça e obtenção de peles. Esses animais têm o hábito de derrubar árvores para fazer diques e manter assim o seu habitat com água represada. Como as árvores locais não resistem a esse excesso de água em suas raízes, muitas secaram e formaram enormes clareiras de árvores mortas (foto 33 a 35). Os castores (foto 36 e 37) não têm predadores naturais na Terra do Fogo, o mesmo lobo que mata as ovelhas dos fazendeiros não consegue caçar os castores.

    Foto 33
    Foto 34
    Foto 35
    Foto 36
    Foto 37

    Finalmente chegamos a Ushuaia, a cidade mais ao sul do planeta, apelidada de cidade do Fim do Mundo  (foto 38 a 41). Particularmente não gostei muito da cidade, pois após 17 dias em contato com a natureza, acompanhado de pessoas que se tornaram boas amigas, Ushuaia se apresentou como uma cidade essencialmente voltada ao comércio de produtos similares ao artesanato local, mas infelizmente “Made in China”, vendidos para os milhares de turistas que desembarcam dos enormes navios de cruzeiro que ali atracam.

    Foto 38
    Foto 39
    Foto 40
    Foto 41

    E foi em Ushuaia que também senti o quanto o aquecimento global está acentuado: nos 2 dias que lá fiquei, durante o dia fazia um calor de 34º C, coisa tão inédita naquelas paragens que os proprietários de algumas lojas fecharam-nas e tiraram o dia de folga para “aproveitar el dia” e ir à praia local que é forrada de cascalho grosso, com a água numa temperatura em torno de 3º a 5ºC (foto 42 e 43).

    Foto 42
    Foto 43

    Infelizmente, com o coração apertado o grupo se desfez, com cada um dos integrantes seguindo em diversos vôos para seus países, com a certeza de ter sido um privilégio ver com os próprios olhos a natureza agreste e ainda preservada da Patagônia, cujas imagens ficaram gravadas para sempre em nossas mentes  (foto 49 e 50).

    Foto 49
    Foto 50

    Gumercindo Vicente Raia 

    Janeiro de 2008

    Edição

    Silvia Regina Campaneruti

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